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Capítulo I "Quando o que se ouve, não se vê..."
Capítulo I "Quando o que se ouve, não se vê..."

                                                                     

                                                          Capítulo I

 

                                             Quando o que se ouve, não se vê...

 

 

             A luz dourada penetrava por entre as folhas, causando uma visão inebriante em meio a uma dissonância de ruídos que surgia de toda parte. E de repente se fazia silêncio, para logo depois descambar para estranhos zumbidos, piados e outros sons que pareciam invadir o verde. Era uma explosão de vida, que em determinados momentos estancava para silenciar numa espantosa quietude. Naquele instante de calada momentânea, dois corpos deslizavam em grande velocidade esquivando-se das árvores. Eram nativos perseguindo um animal que se movia logo a frente. Um deles, Kaluanã, índio jovem e forte, confiante de suas habilidades, tinha a reputação de grande caçador entre seus pares. De boa estatura, tinha os olhos amendoados e negros. Demonstrava esperteza e agilidade em cada movimento. Os cabelos eram lisos aparados de forma retilínea e se estendiam da fronte até a altura das orelhas. Seus pés deslizavam por sobre as folhas caídas, com a velocidade do vento. O outro, Apoema, companheiro inseparável, era mais esguio, de tipo longilíneo. Tinha um olhar observador, de uma vivacidade incomum. Acreditava, mesmo, que podia enxergar para além das distâncias, para depois das árvores. Seus cabelos também lisos, como os de Kaluanã, apesar de corte semelhante, guardavam um certo desalinho, o que lhe conferia um ar de maior liberdade. Usavam uma sustentação de cipó com penas na altura do sexo e, no mais, pés descalços e dorso nu. Antes em desabalada carreira, agora mantinham uma posição quase que estática, observando um ponto fixo na mata. O bicho, sem perceber que estava sendo vigiado, buscava algo para lhe servir de pasto. E por certo a qualquer momento o golpe seria desferido e a cotia cairia, abatida.

           __ Vê, Apoema, akuti no clarão! – sussurrou Kaluanã.

           __ Vejo, irmão

            O animal estava na mira de Kaluanã, que armou o arco e preparou a flecha. Estava ciente de que a tarefa seria fácil. Eles eram acostumados demais as tais caçadas e tudo indicava ser mais um dia rotineiro. Pois que vinha a corrida, daí, então, o golpe certeiro e depois era só carregar a caça até a aldeia. Porém, algo diferente esperava por eles naquele dia. Ao mesmo tempo em que a flecha fora disparada, um som estranho ecoou na mata e afugentou a cotia que se embrenhou, rapidamente, por entre as árvores. O barulho assustou também os outros animais e os dois índios, que sem entender o que acontecia, se entreolharam. 

            __ Mas o que é isso, irmão?

            __ Não sei, Apoema, nunca ouvi nada igual.

            __ Estranho, será bicho grande, irmão?

            __ Não, não é bicho não. Os bichos também se espantaram. Os bichos escutam melhor que a gente. Parecia que era um trovão distante, mas o céu tá bem claro.

             __ Como pode ser isso? – retrucou Apoema.

             __ Será que você pode ouvir a terra?

             Então, o amigo pôs o ouvido no chão tentando desvendar os ruídos do solo. Ele tinha uma habilidade própria, desenvolvida em anos de mata, que lhe permitia distinguir os mais variados sons que a floresta produzisse.

             __ Nada, irmão, nada, não ouço nada! Pode ter sido rugido de onça, um bicho com medo, tocaiado. Era muito silêncio, daí, então o barulho se alastrou.

              Kaluanã sabia que o companheiro não acreditava em suas próprias palavras. Os dois, com certeza, nunca escutaram algo parecido. Era um som esquisito, mas não parecia perto, ecoava pela mata, como a invadi-la. Algo estranho, algo que não era natural. Então o índio perguntou ao amigo:

              __ Apoema, voce já ouviu falar em coisas diferentes?

              __ Que coisas, irmão?

              __ Um tipo de gente diferente.

              __ Ouvi sim, irmão. Já ouvi falar de um povo diferente.

              __ Quero dizer..., gente estranha, já ouviu?

              __ Já ouvi falar dos comedores de gente, abaporu2, existem mesmo. Caitês é povo que come gente. É verdade, Kaluanã, pode acreditar irmão.

              __ Disso eu sei. Também ouvi falar dos comedores de gente. Mas não é isso. É gente diferente, estranha. Um povo que não é como a gente.

              __ Que tipo de povo é esse, irmão, onde você ouviu falar dessas coisas?

              Kaluanã parou de falar por um instante, queria ouvir a mata. Teve a sensação que o ruído se repetira, contudo parecia mais distante desta vez. Olhou para Apoema, que assentiu com a cabeça, também ouvira. Os dois ficaram intrigados com o que estava acontecendo. Porém, Apoema agora também demonstrava curiosidade com a prosa que o amigo começara.

               __ Irmão, explica quem falou dessa gente estranha?

               __ Uma noite dessas, tava estirado na rede, meio que dormindo acordado, quando ouvi a prosa de Kanauê com Aretama.

               __ Kanauê, o filho de Itagibê, o grande cacique?

               __ Esse mesmo! Ele falou com Aretama que irmãos das terras da praia viram corpo, um corpo sem espírito.

               __ E daí, é briga de tribo, irmão!

               __ Não, não é briga não. É corpo sem marca de flecha, sem furo, sem corte.

               __ Como perdeu o espírito então? Foi velhice? Foi doença?

               __ O filho do cacique não disse. Falou que o corpo era de pele branca como nuvem clara, mas tinha azul escuro no olho e na mão.

               __ Não era peixe não, irmão, um peixe grande?

               __ Não, Apoema. É gente. Gente que vem de longe. Gente que vem do lado de lá, do outro lado.

               __ Acredita nisso, irmão. Ninguém sabe se tem o outro lado, ninguém sabe se existe mesmo, onde é. 

               __ Não sei por que, mas acredito.

               __ Aimberê falou alguma coisa sobre isso? – perguntou Apoema, buscando confirmação da história.

               __ Não, o pajé Aimberê não falou nada.

               Aimberê era sabedor das coisas da natureza, das histórias do passado e dos segredos do futuro, isto com certeza intrigara Apoema. Como o pajé nada falou sobre isso, como nada comentou. Foi quando Kaluanã lembrou da velha Moíara. Ele a ouviu dizer sobre uma novidade. Coisas que iam acontecer e daí mudar para sempre o destino dos ibiaçus.

               __ Moíara falou de uma grande mudança que estava chegando. Uma novidade que vinha de longe e que ia mudar o mundo da tribo.

               __ Kaluanã, irmão, essa velha é ruim da cabeça!

               __ Muitos dizem isso, mas acho que ela vê a verdade de alguma forma. Ela sente.

               __ O filho do cacique não falou com Aretama? Vamos procurar ele. – disse Apoema.

               Ainda confusos, os dois índios decidiram iniciar o caminho de volta a tribo. Na verdade tinham se distanciado umas três horas dentro da mata fechada. Mantinham silêncio no retorno e caminhavam a passos largos. Estavam digerindo toda aquela conversa. A gente branca, o barulho que afugentou os animais, a velha Moíara, o filho do cacique e Aretama. E tão absortos que estavam em seus pensamentos e tão calejados eles eram da floresta, que não conseguiam dispensar atenção ao ruidoso bando de maritacas, em seu sinfônico sobrevôo por sobre a copa das árvores, tampouco ao grupo de macacos-prego, que os observava, medindo cada passo que davam em sua jornada de volta. Decorrido algum tempo e Apoema perguntou ao amigo:

                __ Como será a grande praia, irmão?

                __ Não sei, imagino um lugar muito diferente.

                __ Será longe daqui, quantas luas?

                __ Filho do cacique disse a Aretama que é depois da grande montanha.

                __ E lá onde surge deus Sol?

                __ É. É pra lá mesmo.

                __ Irmão, Kanauê foi sozinho?

                __ Não sei Apoema. Só sei que ele foi e voltou e disse que é muita água. Um rio que não tem fim.  

                __ Ele nadou lá?

                __ Disse que não. Disse que é uma correnteza forte, que expulsa a gente.

                __ Será que barulho que espantou akuti veio de lá?

                __ Acho que sim. – Kaluanã balançou a cabeça afirmativamente.

                Aproximavam-se de um clarão e lá estava a aldeia ibiaçu. Já podiam ouvir as vozes que ainda se confundiam com o som dos pássaros e outros animais da floresta. Estavam tão entretidos, que só agora se davam conta de que não trouxeram caça alguma, não cumprindo a tarefa que a eles era incumbida e que desempenhavam sem maiores problemas. A aldeia tinha seis grandes ocas. Elas se distribuíam formando um círculo, onde o centro era guardado para as cerimônias religiosas e outros rituais. A manhã já seguia avançada e o movimento era rotineiro. Os nativos se envolviam em seus deveres diários, confirmando o grande senso de coletividade, que era a reputação dos ibiaçus. 

                Quando os dois se encontravam nos limites da aldeia foram recepcionados pelos irmãos Iaruê e Jupiá, filhos de Ipiraciba. Eles se aproximaram e foram logo perguntando pela caça. Os indiozinhos estavam completamente nus, eram de uma semelhança física espantosa, pois que não eram gêmeos. Ambos esguios e de um caminhar tão leve, que pareciam jamais tocar o solo. Os cabelos tinham corte parecido com os demais meninos da tribo, assim como os de Apoema e Kaluanã. A princípio as indagações não pareciam incomodar aos dois caçadores, que respondiam as perguntas, sem contudo deixar de caminhar.

                __ Anauê, irmãos! – cumprimentou o pequeno Iaruê

                __ Anauê! – respondeu Kaluanã, já prevendo o inquérito.

                __ Foram muito longe? – indagou Juriá

                __ Fomos seguindo os passos dos bichos e chegamos até a terceira curva do rio de baixo.

                __ Não pegaram caça nenhuma? – continuou indagando o menino.

                __ É que a sorte não acompanhou a gente. – respondeu desta vez, Apoema.

                __ Mas dizem que pra aquelas bandas tem muito macaco, cotia, que tem muito bicho. – insistiu o indiozinho.

                __ É, e tem mesmo. Mas é que a mata tava nervosa hoje, tava agitada. Os bichos estavam espertos, fugindo o tempo todo. – explicou Kaluanã, já demonstrando certa impaciência, com a curiosidade da dupla.

                Prevendo uma nova rodada de perguntas, Apoema, procurando se desvencilhar dos meninos, disse que precisavam conversar com Aretama e que tinham que deixar aquela prosa, sobre a caçada, para mais tarde. Kaluanã agradeceu ao amigo com o olhar. Os filhos de Ipiraciba, no entanto, já estavam distraídos, correndo em direção a um bando de curumins, que por sua vez atormentavam um pobre lagarto verde, que buscava de todas as formas lutar por sua sobrevivência.

                __ Vamos ver se encontramos Aretama?

                __ Sabe, Apoema, prefiro ver Moíara primeiro. – disse Kaluanã, que tinha alguma ascendência sobre o amigo.

                __ Tá bom, vamos ver Moiara.

                A índia Moíara vivia na menor oca da aldeia e apesar de dividir com muitos dos seus o mesmo espaço, se mantinha isolada, solitária. Falava pouco e se mostrava sempre distante e pensativa. Era baixa e, devido andar meio curvada, aparentava ser ainda menor. Seus cabelos em total desalinho e esbranquiçados lhe davam um ar de desleixo. O corpo magro parecia sem músculos com a pele praticamente colada aos ossos. Usava um arranjo de penas sustentado por cipós na altura da cintura, deixando os seios, caídos, à mostra. Rugas na face denunciavam o tempo de vida daquela mulher e quase tudo nela lembrava cansaço, mas algo destoava naquela aparência. E era, sem dúvida, o seu olhar profundo e ao mesmo tempo de um brilho tão intenso que impressionava aos que se determinassem a fitar o seu rosto. As visões atormentavam a cabeça da velha índia e quando as tinha não guardava para si. Sustentava a fama de doida entre os irmãos da tribo, porque divulgava, freneticamente, o que sentia e via, causando sempre alvoroço entre os ibiaçus. O sol entrava tímido no interior da oca causando um efeito de luz e sombra. A índia estava sentada com uma cuia entre as pernas, onde triturava uma porção de grãos. O pilão subia e descia num vai e vem ritmado. Os dois rapazes chegaram e Kaluanã curvou-se para entrar, seguido de perto pelo amigo. Olhou a velha e a cumprimentou:

               __ Anauê, Moíara!

               __ Anauê!

               __ Anauê, irmã! – falou Apoema.

               __ Anauê! – cumprimentou mais uma vez Moíara.

               __ Podemos falar com voce? – perguntou Kaluanã.

               A velha olhou para os dois parados à sua frente e como se pudesse ler o pensamento deles, franziu a testa, dizendo:

              __ Tudo aquilo que a gente vê e que antes não se via, tudo aquilo que a gente ouve e que antes não se ouvia faz grande reboliço na cabeça

              __ Do que a irmã tá falando? – perguntou Apoema.

              __ O que vocês estão procurando? – indagou Moíara, sem responder a pergunta de Apoema.

              Kaluanã pensou que Moíara e os outros da tribo bem que podiam ter ouvido o estranho som que ecoara pela mata mais cedo. E só agora diante dela ele se deu conta disso e perguntou então:

             __ Moíara, você ouviu o barulho na floresta?

             __ O barulho tá na cabeça de Moíara.

             Apoema, imaginando que sua teoria sobre a loucura da velha estava correta e, que ela em seus devaneios, escutava vozes e via fantasmas questionou já incrédulo:

             __ Que tipo de barulho é esse, irmã?

             __ Não é deste mundo. Ele explode, é um clarão e vem fogo e fumaça. Eu ouço, eu vejo!

             Os dois não compreendiam direito o que ela queria dizer. Com certeza era alguma alucinação que aflorava naquele momento em plena luz do dia e eles eram testemunhas. Ela, indiferente ao que eles pensavam, continuou a vaticinar:

            __ Uma mudança vem vindo. E a morada dos deuses vai ser violada. Eles não vão parar. Eles têm flechas de fogo. Eles não vão parar. São flechas de fogo, flechas de fogo. Não, não, eles não vão parar, não, nãaao, nãaao..., eles não vão parar. – gritava a velha.

             Agora ela mantinha os olhos cerrados, parecia ter entrado numa espécie de transe. Com a cabeça baixa e a voz agitada dizia palavras desconexas. Dava a impressão de que não estava mais ali. Por vezes murmurava num quase choro e em outros momentos vociferava furiosa, como se algo ou alguém a incomodasse. Estava claro, para ambos, que fora tomada, possuída. Os dois caçadores permaneciam atônitos diante da figura enlouquecida de Moíara. Quando, finalmente, decidiram chamar o pajé, os olhos da índia foram se abrindo lentamente e ela fitando Kaluanã, como se o avaliasse, alertou:

            __ A verdadeira resposta vem de dentro da gente!

            __ Descanse Moíara. – disse Kaluanã, mostrando preocupação com a velha índia.

            __ Não vamos descansar mais, não vamos descansar nunca mais! – respondeu Moíara.

            __ Obrigado, irmã. – Apoema, notando que ela estava mais calma, agradeceu, puxando Kaluanã pelo braço.

            Os dois já estavam saindo da oca quando ouviram a voz sussurrante da velha cunhã:

            __ Você tem que fazer o que tem que fazer. Se fugir o destino te pega. 

            Kaluanã, sendo quase arrastado por Apoema, olhou por sobre o ombro e pode ver Moíara na mesma posição em que se encontrava antes da conversa, moendo os grãos, como se durante todo o tempo sempre estivera assim. As palavras da índia ressoavam na cabeça do jovem caçador, que se perguntava mentalmente: Qual será o meu destino? E por que eu fugiria dele? Será que tudo tinha a ver com o ocorrido mais cedo? Percebendo a confusão que se estabelecera na mente do amigo, Apoema concluiu:

            __ Não fique aí matutando, irmão. Ela é doida, pode acreditar.

            __ Que barulho era aquele que ela ouvia dentro da sua cabeça? – perguntou Kaluanã, mais para si mesmo do que ao companheiro. Eles estavam decididos a procurar por Aretama. Talvez tivessem com ele as respostas para suas indagações. Mas o índio não estava na aldeia, tinha ido pescar no rio, segundo informou seu filho Inandê. Resolveram descansar e aguardar o retorno de Aretama. Apoema, contudo, insistia no assunto, buscava qualquer revelação que pudesse aclarar seus pensamentos. Não percebia que o amigo estava tão perdido quanto ele, emaranhado em suas dúvidas.

            __ Irmão, não consigo parar de pensar nas coisas que você disse. Você sabe mais alguma coisa? – Apoema buscava respostas para seu desatino.

            __ Não! Disse tudo que eu sabia.

            __ Este índio branco da praia é desse mundo?

            __ Acho que não! Nossos irmãos da terra têm cor de barro como a gente.

            __ Será que tudo isso pode ser um castigo dos deuses para os ibiaçus? – divagou Apoema.

            __ Não, ibiaçu é povo bom! – defendeu a sua gente o jovem Kaluanã.

            Os dois caçadores sentiam fome. É que a hora se adiantara sem que eles se dessem conta. Já entardecia, mas na oca de Jaciema, mãe de Kaluanã, ainda restava algum peixe na brasa. Eles então se serviram de um pacu e puseram-se a comer em silêncio. Após ao que, decidiram se esticar, uma vez que um sono preguiçoso já vencia a atenção daquelas mentes agitadas. Uma atmosfera indolente invadia a aldeia naquelas tardes de verão causando diminuição no ritmo da vida.